quinta-feira, 19 de maio de 2011

Microscópio de Mundo

Conforme Clifford Geertz, o papel da etnografia é trabalhar com a esfera do micro, de modo a revelar uma série de questões mais amplas sobre a humanidade e as sociedades. Apesar de a etnografia partir de um estudo “microscópico”, as interpretações antropológicas servem para explicar fenômenos de grande escala, “[...] de comunidades inteiras, civilizações, acontecimentos mundiais, e assim por diante [...]. É para dizer, simplesmente, que o antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos”[1]. Em nosso caso, a realidade micro é o Carimbó.

Ao ser investigado, traz à tona questões amplas e urgentes atualmente, como o são as questões sobre identidade nacional, a indústria cultural,a necessidade de políticas públicas para a cultura, os processos históricos de marginalização étnica e social. O estudo sobre o Carimbó, além de aprofundar o conhecimento sobre a manifestação em si, auxilia na compreensão do modo de vida das comunidades tradicionais que habitam a região amazônica e que foram marginalizadas triplamente ao longo da história brasileira: como classe social, como etnia e por pertencerem a uma zona geográfica especialmente excluída nos processos de modernização do nosso país.






   Espaço Cultural Tio Milico, Fortalezinha, PA






Uma vez que, como afirma o antropólogo Roberto da Matta, a identidade brasileira não é vista como “[...] um caroço ideológico imutável, mas como um arranjo historicamente dado de elementos – objetos, relações, palavras, vestimentas, espaços, valores, personalidades e mitos – que, embora existentes em todas as sociedades, combinam-se de modo especial, constituindo o que os brasileiros e estrangeiros reconhecem como sendo o Brasil”[2], acreditamos necessário voltar os olhos para as culturas tradicionais, como parte de um fortalecimento destes elementos singulares e únicos que fazem do Brasil, Brasis[3].

Este movimento de afirmação das identidades nacionais, que tem acontecido não apenas no Brasil, mas em outros países periféricos, faz-se necessário diante do atual contexto de expansão da indústria cultural e a ideologia do consumo que estes difundem e propagam. Apesar das duras críticas, o capitalismo neoliberal segue dominante. Voltar-se para as culturas tradicionais é, portanto, voltar-se para formas de explicação, compreensão e vivência da realidade totalmente distintas da cultura de mercantilização das relações e valores do sistema capitalista. Enquanto nas culturas tradicionais encontramos valores como o respeito aos saberes ancestrais, aos mestres, o prazer, a reciprocidade, a coletividade e a comunhão entre homem e natureza, os valores difundidos pelo sistema econômico e ideológico dominante são o individualismo extremo, a concorrência, o acúmulo, a dicotomia homem-natureza, as relações interessadas e o consumo irrefreado.

Por isso a importância de entender o mundo sob outro prisma,  onde estão presentes os valores que as culturas tradicionais carregam, que é repleta de elementos carentes na sociedade atual. Reforçada, revivida e reinventada, elas fortalecem nossa idéia de singularidade, o que, por sua vez, nos torna mais fortes diante dos processos de massificação da cultura hegemônica capitalista.





                                                         Ensaio grupo Akauã, Cachoeira do Arari, PA



Sobre o processo crescente de globalização, Renato Ortiz[4] afirmava na década de 90 que não existiria,  uma real globalização: esta significaria, necessariamente, um intercâmbio econômico e cultural equilibrado entre todos os países. O que viveríamos seria mais um processo de homogeneização cultural, uma mundialização da cultura do consumo, que leva a um desmantelamento de outros modos de vida que não fazem parte desta lógica. Este movimento contribui para o desaparecimento de manifestações artísticas como o Carimbó, ou para a incorporação destas manifestações por parte do sistema, com o único e exclusivo objetivo de consumo e lucro (por parte, principalmente, das empresas turísticas e dos governos das regiões).

Na mesma linha de Ortiz, a pesquisadora Maria Nazaré Ferreira destaca como a indústria cultural e os meios de comunicação de massa atuam, por um lado, no sentido da desintegração dos “[...] valores culturais, históricos, morais, éticos e estéticos dos povos latino-americanos, e, de outro, globalizam, homogeneizando gostos e costumes” [5]. Assim, o avanço da economia neoliberal, do desenvolvimento de novas tecnologias e do poder crescente dos meios de comunicação de massa exige que pesquisadores e políticos de países em desenvolvimento, como o Brasil, adotem um posicionamento de defesa dos interesses políticos e econômicos nacionais. Sob outro prisma, exige também um posicionamento de afirmação dos valores culturais que nos fazem únicos, singulares e capazes de uma releitura do sistema e do mundo distinta da defendida e propagada pelos países desenvolvidos.





                                                                  Espaço Curuperé, Outeiro, PA  
                                                                                        Fotos: André Moura Campos
         

Neste sentido, vale destacar a afirmação de Da Matta sobre como, ao mesmo tempo em que se fortalecem as correntes globalizadoras, crescem os movimentos de defesa sobre o regional. Viveríamos um momento de polarização entre o local e o global, em que “[...] a universalização crescente imposta pela ausência de um “outro lado” implica uma necessidade premente de autodefinição e, acima de tudo, de autoconhecimento. Daí minha preocupação com a identidade brasileira [...] pergunto-me se não é precisamente nessas situações de irresistível globalização que mais ficamos conscientes de nossa singularidade e identidade”[6].

De alguma maneira estamos diante deste processo de tomada de consciência da nossa “brasilidade” – identidade cultural única de um povo também único – tal como definido por outro grande antropólogo, Darcy Ribeiro: “Como não há nenhuma garantia favorável de que a história venha a favorecer, amanhã, espontaneamente, os oprimidos, há, ao contrário, o legítimo temor de que, também no futuro, essas minorias dirigentes conformem e disformem o Brasil segundo os seus interesses, torna-se tanto mais imperativa a tarefa de alcançar o máximo de lucidez para intervir eficazmente na história a fim de reverter sua tendência secular. Esse é o nosso propósito”[7]. E o nosso também.



                                                                      


 


[1] Geertz, Clifford. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p.24.
[2] Da Matta, Roberto. A Mensagem das Festas: Reflexões em torno do sistema ritual e da identidade brasileira. Revista Sexta Feira. São Paulo, 2, 1998, n. 2, ano 2, p. 73. 
[3] Da Matta, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?, 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
[4] Ortiz, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[5]Ferreira, Maria Nazaré.A Comunicação (Des)Integradora na América Latina – Os contrastes do neoliberalismo. São Paulo: Edicon, 1995, p.22.
[6] Da Matta, Roberto, op cit, 1998, p. 73.                                                 
[7] Ribeiro, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 248.

Nenhum comentário:

Postar um comentário