Reconhecendo
nossas raízes milenares,
forjadas
por mulheres e homens de distintos povos;
Celebrando
a natureza, a PachaMama,
do qual somos parte e que é vital para a nossa
existência (…)
Constituição da República Plurinacional do
Equador, 2008.
Em 2008, o governo de um país
“hermano”, latino-americano, praticamente desconhecido para a maioria dos brasileiros, o Equador, aprovou uma nova Constituição Nacional - ou melhor, Plurinacional – com o objetivo
de reconhecer e garantir direitos condizentes com a diversidade étnico-cultural
existente.
Em suas páginas, ousados artigos desafiam categorías
centenárias consideradas inquestionáveis até pouco tempo. É o caso da forma
política soberana do Estado-Nação, em sua versão homogeneizadora de “um povo,
uma língua e um território . Em contraposição, a nova carta magna apresenta
artigos desafiadores que apresentam o
Equador como um Estado Plurinacional.
Por plurinacionalidade, entende-se à
presença de diversas nacionalidades e povos (indígenas, afro-descendentes,
montúbios, ciganos) que coexistem no interior de um mesmo território, sob a
direção de um mesmo governo. Significa renovar instituições, reformular velhas
legislações e aplicar políticas públicas inovadoras, que obedeçam a diversidade
oficializada. Por exemplo, implantar medidas de estímulo ao bilinguismo através
da criação de escolas que ensinem tanto em espanhol quanto no idioma indígena
quéchua. Ou criar novas instâncias jurídicas que garantam a legalidade do
direito consuetudinário (tradicional) indígena.
O Sumák Kawsay ou Buen
Vivir
Além da plurinacionalidade, a nova
constituição oficializa o debate -permeado por conflitos - entre os movimentos
sociais indígenas e o governo de Rafael Correa, sobre a necessidade de um novo
projeto de desenvolvimento nacional. A nova proposta, definida como Sumák
Kawsay (em quéchua) ou Buen Vivir (em espanhol), é um movimento - ainda incerto
- rumo a uma existência social diferente da atual, fundamentada em desigualdades sociais e na
exploração ilimitada da natureza.
O conceito-projeto de Sumák Kawsay/ Buen
Vivir inaugura a possibilidade da incorporação de elementos milenares das práticas e
cosmovisões indígenas (marginalizados e invisibilizados
desde os primórdios da colonização) como parte do projeto de desenvolvimento
político, econômico e cultural. A ideia é a seguinte: Certos fundamentos
indígenas poderiam ser recuperados - em termos de compreensão e conhecimento,
mas também em termos de práticas sociais -
para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e menos
depredatória.
Por um lado, certas práticas ancestrais
que envolvem o comunitarismo, a
solidariedade e a reciprocidade são consideradas
fontes de inspiração para novas atividades de produção, distribuição e consumo
que diferem daquelas fundamentadas nas lógicas do individualismo, da competição
e do acúmulo.Por outro lado, a natureza torna-se Pachamama, e de depósito de
recursos naturais potencialmente rentáveis transforma-se na deidade andina da
Mãe Terra. O que nos remete à cosmovisão
indígena holística, que percebe o mundo através da integração fundamental entre
todos os seres vivos (humanos e não humanos) e entre estes e o universo.
A incorporação da concepção mítica da
Pacha Mama pelo texto constitucional é um desafio à concepção ocidental de
mundo que, principalmente a partir do desenvolvimento das ciencias modernas,
separou o ser humano da natureza (e a mente do corpo, o sujeito do objeto, a
razão da emoção). É esta visão dualista
que rege o modelo de desenvolvimento dominante, baseado em uma visão utilitarista
da natureza, vista como um objeto externo, inerte e inferior ao ser humano
superior e dominador.
Este artigo poderia remeter ao
romantismo modernista de Policarpo Quaresma, célebre personagem de Lima Barreto,
que “queria-porque-queria” a adoção do tupi como idioma oficial do Brasil. Não
fosse o fato do Sumák Kawsay estar, de fato, sendo discutido a sério pelo
governo do Equador desde a vitória de Correa, em 2007. E não apenas lá. Um projeto
similar de reformulação do estado e da economía nacional, fundamentado no Sumac Qamaña (em Aymara) ou Vivir Bién (em
espanhol), passou a ser discutido na Bolívia após a vitória de Evo Morales na eleição de 2006.
A natureza vista
como Pacha Mama
“Se reconhece e
se garantizará às comunidades, povos e nacionalidades indígenas (...)
os seguintes
direitos coletivos: (...) manter, proteger e desenvolver seus conhecimentos
coletivos, suas ciências, tecnologias e saberes ancestrais”.
Constituição da República do Equador, 2008
Como
resultado de uma luta secular, No Equador e na Bolívia os povos indígenas
inauguraram o novo século como protagonistas de um novo processo político. Através
das novas constituições, os dois países legitimam
e legalizam aquilo que crescentemente vem sendo discutido por intelectuais e
acadêmicos pouco ortodoxos em todo o mundo:
a existência de uma simetria entre o conhecimento científico eurodescendente, legitimado
pela academia e pelo estado, e considerado único cuja validez é universal, e o
conhecimento dos povos tradicionais, visto como pensamento mítico, folclórico,
cuja aplicabilidade restringiria-se a esfera do local.
A questão é que, neste caso, o sujeito do direito são as pessoas, à quem se
garante o usufruto de um ambiente são, visto como um bem
coletivo. No caso da
constituição equatoriana, é a própria natureza, a Pacha Mama, o sujeito dos
direitos. Oras, voltamos a perguntar, mas como é possível delegar direitos à
natureza se, conforme a tradição jurídica, estes só podem ser gozados por
pessoas? Afinal, para ser titular de
direitos é necessário exigir tais direitos. O que esperamos futuramente? Árvores
defendendo-se em tribunais?
Em
primeiro lugar, se olharmos bem para as práticas atuais do direito financeiro,
por exemplo, abundam os exemplos onde são os patrimônios - e não as pessoas –
aqueles que respondem como sujeitos de direitos. Em segundo lugar, sempre houveram
soluções para garantir os direitos daqueles que não os podem exigir. No caso das
crianças, por exemplo, onde assina-se à terceiros a responsabilidade por tal exigência.
Por
fim, é necessário relembrar que o Equador é um Estado Plurinacional. Composto,
portanto, por distintos povos, entre os quais estão os quéchua Kitu Kara, Panzaleo, Chibuleo, Salasaka,
Kisapicha, Waranka, Kañari que, com particularidades,
compartem a visão de que a
Mãe-Terra é muito mais um “alguém” do
que um “algo”, composto de consciência e animidade. O que, consequentemente,
torna a Pacha Mama passível de direitos.
Mas afinal, o que é o
Sumák Kawsay?
Foi na tentativa de compreender
mais profundamente o projeto do Sumak Kawsay/Buen Vivir que, em julho deste ano, me desloquei até a
região conhecida como “la mitad del mundo”. Ali, a 2.800m de altitude e
incrustada entre os vulcões Pichincha, Chimborazo e Tungurahua,
apresenta-se a elegante cidade de Quito, originalmente batizada São
Francisco de Quito.
A capital quitenha foi a sede do
curso intensivo sobre “O Buen Vivir equatoriano”, oferecido pelo Ministério das
Relações Exteriores, Comércio e Integração a 20 jovens equatorianos e 40
extrangeiros originados de 20 países do mundo. Foi um mês de profunda imersão
no processo, propiciada por aulas, viagens de campo e pela vivencia
“extra-oficial” no cotidiano quitenho recém criado. Tudo compartilhado com
colegas - alguns dos quais se tornaram, em curto período, amigos de longa data
- provenientes de países tão díspares e distantes como Bulgária, China, Canadá
e Malásia.
Foi a pregunta “Mas afinal, o que é
o Sumák Kawsay” a propulsora de minha viagem às terras altas da América Latina.
Seria... Uma versão indigenista do Socialismo do Século XXI chavista? Um
apelido andino para Desenvolvimento Sustentável? Capitalismo Verde disfarçado
de Socialismo Ecológico? Ou retórica populista salpicada de misticismo
pachamâmico?
Avanços e retrocessos foram
observados durante minha estadia no Equador. Entre os problemas, podemos citar
a aprovação da Lei de Mineraria que, entre outras práticas anti-democráticas,
foi feita sem a consulta prévia aos povos indígenas afetados e abriu brecha
para explorações com graves consequências
ambientais, ferindo os direitos da Pacha Mama previstos pela
constituição.
Entre os avanços, cito três:
O Projeto Yasuni, que visa manter
no subsolo amazônico uma imensa área
petrolífera que, se explorada, geraria tanto ganhos financeiros quanto perdas
ambientais e a desestruturação de comunidades autóctones;
A aplicação do “Plano Plurinacional
para eliminar a discriminação racial e a exclusão étnica” que fomenta uma produção
artística e midiática de caráter intercultural;
A incorporação de diplomatas
indígenas, afro-equatorianos e representantes de movimentos sociais por parte
do Ministério de Relações Exteriores;
A criação de cursos universitários
voltados aos saberes ancestrais como parte do “Plano Plurinacional de Ciência Tecnologia,
Inovação e Conhecimentos Ancestrais”.
Reflexões mais aprofundadas sobre o processo equatoriano não caberão neste artigo. De fato, me propus uma tese de doutorado para debatê-lo em sua complexidade. Adianto apenas que, com conflitos e contradições, o Equador está inovando nas tentativas de reformular velhas legislações e implementar políticas mais igualitárias. Algo inimaginável a coisa de década e meia atrás, quando a teleologia neoliberal se impunha sobre uma América Latina fragilizada e subordinada.
O fato é que a questão propulsora
de minha viagem à Quito, “Mas afinal, o que é o Sumák kawsay?”, foi comigo, e comigo voltou. Quando aterrissei no aeroporto de Guarulhos, lá estava ela ao meu lado, insistente. Ainda não sou
capaz de responder plenamente. Até porquê, no fim das contas, o Sumák Kawsay/
Buen Vivir é um conceito-projeto de difícil definição, pois em pleno processo
de construção. O que, de maneira alguma,
o desqualifica enquanto possibilidade alternativa à lógica hegemônica.
Afinal, “alguém” tinha que
intensificar a crítica à contínua opressão aos povos e à natureza, começando
por uma reformulação constitucional. Corajosamente, Equador e Bolívia assumiram
o desafio. Graças à Deus.
Ou melhor dizendo , graças à Pacha Mama!